terça-feira, 5 de agosto de 2008

Ecad tem de dar real publicidade a todos os seus atos

por Daniel Campello Queiroz


Datam de sua criação as divergências que cercam o ente responsável, no Brasil, pela arrecadação e distribuição de royalties advindos da execução pública de música: o Ecad. Por ser uma associação privada, porém definida em lei — artigo 99 da Lei 9.610/98 —, uma série de dúvidas permeia sua atuação: deve o Escritório ser norteado pelo interesse público? A publicidade de seus atos, assembléias e regulamentos é essencial?
O fato é que, no atual cenário, o Ecad tem importância inequívoca. A sobrevivência de muitos compositores que se dedicam unicamente ao ofício de compor, e que não aceitam a imposição de se arvorarem em intérpretes, está quase que condicionada à existência do Escritório.
É incontestável, também, que o Ecad realizou, nos últimos dez anos, um incremento de arrecadação altíssimo; em princípio, os titulares das obras executadas deveriam estar satisfeitos. Porém, a eficiência arrecadadora não é nem semelhante à distribuição dos royalties; sobretudo quanto i) à transparência das regras que a ditam e ii) ao grau de equanimidade alcançado pela distribuição.
Não se trata de mera opinião, mas de uma constatação. O site do Escritório na internet (www.ecad.org.br) informa que, em 2007, foram arrecadados R$ 302.206.444,00; já distribuídos, R$ 250.490.071,43. Para onde teriam ido os mais de 50 milhões de reais não distribuídos? Ainda: a distribuição feita no ano de 2007 contemplou 100 mil titulares de obras, num universo de mais de 210 mil titulares associados às associações que compõem o Escritório. Pode ser considerada equânime uma distribuição que contempla menos da metade dos titulares associados?
Alega-se que os valores não distribuídos seriam destinados ao pagamento de créditos retidos, já que, por falta de informação, muitos titulares não declarariam corretamente seus repertórios. Entretanto, existem critérios que estabelecem categorias de créditos — há os créditos retidos, os pendentes e os parâmetros —, o que resulta em uma redução, em média de 20%, dos valores que inicialmente seriam devidos aos titulares. E onde estariam expostos tais critérios, cuja explicação é de óbvio interesse dos titulares? As associações que compõem o Escritório, único canal de comunicação permitido aos titulares, não os divulgam.
Tarefa igualmente indócil é saber os porquês da evidente concentração na distribuição dos royalties, já que o Escritório não divulga a consolidação das regras de distribuição de royalties, isto é, o regulamento de distribuição. No site, as regras de arrecadação são encontradas claramente explicadas; as de distribuição, apenas genericamente expostas. Via de regra, à tentativa de obtenção de um exemplar do regulamento de distribuição é dada a seguinte resposta: o regulamento está em fase de consolidação das decisões tomadas na última Assembléia do Escritório.
É sabido que nessas Assembléias, em que se tomam decisões no mínimo discutíveis, há Associações que detêm maior poder decisório que outras, de acordo com os valores que arrecadam. Além disso, não há a possibilidade de presença dos associados nas Assembléias, apenas dos representantes das Associações.
Já são famosas algumas das decisões tomadas nas Assembléias do Escritório, como a que definiu que a execução das vinhetas de abertura de programas não deve gerar créditos a serem distribuídos aos autores. Porém, outras não são assim tão propaladas, como a que determinou, recentemente, que as músicas criadas especificamente para serem fundo em programas de televisão — as trilhas de background — valem 1/12 de quaisquer outras obras executadas em programas de televisão.
Por mais incrível que possa parecer, temos no Brasil uma associação privada que decide o que é mais música e o que é menos música. Trocando em miúdos, uma obra de um produtor musical criada para ser fundo musical de uma cena de novela, por exemplo, vale 12 vezes menos que outra canção qualquer, que seja executada no decorrer da mesma cena, mas que não tenha sido criada exclusivamente para tal.
Há, ainda, a esdrúxula regra segundo a qual apenas o intérprete da obra musical utilizada em abertura de novelas tem direito à distribuição de valores; aos músicos acompanhantes não cabe nenhum centavo pela utilização de sua interpretação na abertura de uma novela.
Diante de tão exóticas regras, convém rememorar: todas as obras musicais são rigorosamente obras musicais, e devem, por tal, ser remuneradas a partir de critérios que respeitem essa igualdade. Trata-se de se cumprir a Lei 9.610/98, que não cria categorias de músicas, e nem determina que qualquer associação o faça.
De fato, estas vicissitudes são uma metonímia da complexidade que envolve a gestão coletiva no Brasil. Enfrentar esse caos exige foco: dar real publicidade a todos os atos desta associação, sobretudo quanto à distribuição dos royalties fartamente arrecadados. Para tentar cumprir esse intento, necessário, como primeiro passo, nomearmos os bois, para tornar público quem são os responsáveis por tomar as decisões, e o porquê de deterem tal poder. As decisões que definem a distribuição de royalties de execução pública de música, no Brasil, não podem mais ser tomadas sem a participação dos maiores interessados: os criadores.
Em muito boa hora, o Estado brasileiro chamou para si a responsabilidade: o Ministério da Cultura realiza, neste ano e no próximo, o Fórum Nacional de Direito Autoral, cujo lançamento ocorreu no final do ano passado, no Rio de Janeiro. A próxima atividade será mais uma vez no Rio, nos dias 30 e 31 de julho, e terá como tema a Gestão Coletiva de Direitos Autorais no Brasil.
Esperamos que nessa etapa do Fórum sejam discutidas soluções, não no sentido de enfraquecer a Lei de Direitos Autorais, nem mesmo com o intuito de acabar com o Ecad, como temem alguns. Passou da hora de recriar o status quo estabelecido, que privilegia os interesses de alguns, em detrimento dos direitos daqueles que fazem da criação o trabalho que os sustenta.
Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 2008

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